Escola
A curiosidade como combustível para a formação leitora
A curiosidade de saber como se produziam notícias levou Januária Alves, então com 11 anos, a mandar histórias para o suplemento infantil de um jornal de sua cidade, em Pernambuco. Os textos foram publicados e, anos mais tarde, já formada em Jornalismo, ela virou editora do mesmo veículo.
“Pode passar o tempo que for, criança é sempre criança, quer saber, deseja falar. Anseia saber tudo sobre o mundo, tem desejo de pertencimento. É um ser humano completo, mas em constante formação, como nós, adultos. No dia em que acharmos que sabemos tudo, estamos perdidos”, acredita a especialista em alfabetização midiática e autora de dezenas de livros infantojuvenis. O mais recente foi feito em parceria com Mauricio de Sousa: #Xô, Fake News: Uma História sobre Verdades e Mentiras.
Em entrevista à Qualé, Januária falou sobre a importância do jornalismo para crianças, o papel dos pais na educação midiática, multiletramento e os cuidados com os influenciadores. Confira a entrevista completa com a especialista.
Qualé: Que análise você faz do jornalismo para criança no Brasil?
Januária: Concluí minha pesquisa de mestrado sobre isso em 1991. Na época, eram mais de 20 publicações direcionadas às crianças. Não fiz mais um levantamento para ver quantos ainda funcionam, mas sei que são poucas. O que acontece é que ainda se fazem produtos para crianças com preconceito, como se fossem coisas menores, mas é o contrário. A responsabilidade, o compromisso e o desafio são enormes. O Brasil é um país com grandes dificuldades no aprendizado, temos altos índices de analfabetismo funcional. A pandemia agudizou o problema. Mesmo assim não se vê o texto informativo como fundamental. Realmente faltam publicações que exercitem com as crianças as diferenças dos textos informativos e ficcionais, os artigos de opinião, que são questões que, a partir de 2024, o PISA (Programa de Avaliação Mundial) vai começar a mensurar de tão importantes que são para a formação leitora da criança. Quando digo isso estou falando de um leitor capaz de ler, interpretar, dialogar, compreender, criticar. Isso não é possível sem a leitura dos informativos. Estamos perdendo no Brasil a oportunidade de ter diversidade desse tipo de material para as crianças. Há um potencial imenso que ainda falta ser explorado, seja por preconceito, seja por falta de compreensão da relevância desse tipo de produto na formação da criança. A Qualé deu um passo ousado, mas muito importante.
Qualé: Os meios e o acesso à comunicação se transformaram. As crianças também?
Januária: A curiosidade infantil é a mesma de sempre e nos mobiliza a buscar as respostas para as nossas questões. Elas precisam falar, têm um desejo imenso de participar, apresentam muitas questões, querem entender o mundo. Tanto que vemos mais crianças na internet do que gostaríamos. Soma-se a isso a questão das notícias nas redes sociais, que fazem o papel da imprensa. Essa é uma mudança profunda que está impactando no comportamento e na vivência das crianças. O que nós, adultos, precisamos é ajudar nisso, a lidar com a avalanche de informações. Saber diferenciar o que é artigo de opinião, reportagem, fake news. A gente pode entrar em sala de aula e explicar, mas nada substitui a experiência da criança como leitora e também como produtora de notícias.
Como os pais e professores podem ajudar no processo de educação midiática?
A primeira coisa é estimular que as crianças façam perguntas. As dúvidas geram um movimento na construção do raciocínio. É utilizar a curiosidade, entender o que ela sabe sobre o assunto e ir puxando o fio para o novelo desenrolar. Usar ferramentas lúdicas também é outra dica. Os livros e informativos são aliados, introduzem assuntos espinhosos de forma leve. As fake news, por exemplo, podem ser trabalhadas por meio de fábulas. Fazer da contação dessas histórias algo integrante do cotidiano familiar. O compartilhamento de visões de mundo é essencial e isso não deve ser só obra da escola. Todos os lugares são lugares onde a aprendizagem acontece se existem a curiosidade e o diálogo. O problema é que os pais e educadores não estão sabendo como lidar com a quantidade de informações. Por isso, primeiro é preciso refletir sobre como lida com a informação, quais as fontes, se checa a notícia, o que realmente vale a pena acessar, como é a própria curadoria de informações. Como cobrar isso das crianças se você, como cidadão, não está conseguindo dar conta dessa tarefa? Muitas crianças reclamam que não conseguem conversar, porque os pais não saem do celular. Tem que dar exemplo.
Qual a importância de oferecer diversos tipos de material de aprendizado, como o papel?
É ótimo ter contato com o papel. Tem um livro muito importante, O Cérebro na Era Digital (Maryanne Wolf), que mostra como a leitura no papel ajuda a produzir outro tipo de sinapse no cérebro, diferente do que acontece com a tela. Tudo influencia de forma afetiva, inclusive o cheiro da folha. É preciso que a diversidade de suportes de texto exista, é o que chamamos de multiletramento. E para saber ler e escrever é necessário saber lidar não só com o papel, mas com as telas. Não pode excluir, tem que ter todas as experiências. Precisamos ajudar a construir o cabedal. Levar a notícia para a sala de aula já não é o suficiente. Não é uma coisa que vai funcionar, são várias. Devemos ampliar o repertório com livros, games, internet, revistas, cinema, teatro. Tudo faz parte do caldeirão de incentivo ao interesse. Afinal, uma criança curiosa já é meio caminho andado.
Fale sobre sua parceria com Mauricio de Sousa no livro #Xô, Fake News: Uma História sobre Verdades e Mentiras.
O Mauricio de Sousa é meu padrinho literário e eu sempre quis escrever um livro com ele. Quando surgiu a questão das fake news, vi a urgência de ter um produto forte e com representatividade sobre o tema. Sempre fui fã da Tina. O Mauricio então cresceu a Tina e ela virou jornalista na Turma da Mônica Jovem. No livro, a turma precisa enfrentar as notícias falsas em seu cotidiano. Além desse, também escrevi o Como Não Ser Enganado pelas Fake News e é incrível como as escolas precisam desse tipo de material.
Hoje muitos influenciadores são os ídolos da nova geração. Quais as responsabilidades?
É incrível ver que muitos nem pensavam em ser influenciadores. Eles são habilidosos, dominam a câmera, a linguagem, mas sofrem com as questões do universo digital como os haters, os discursos de ódio, o assédio. Eles estão procurando ajuda, inclusive psicológica, para aprender a lidar com isso. Por causa do contato com as crianças, os influenciadores já perceberam que falta a atenção dos pais. Para os comunicadores, é um grande desafio entender quem é seu público, o que procura neles e nas redes. Eles são espelhos e isso é muito pesado para quem não imaginava a responsabilidade. Está tudo ainda em construção, mas é importante refletir: por que essa criança ama tanto aquele personagem? A questão não é proibir o acesso, mas sentar ao lado e tentar entender melhor o universo que atrai, que fascina. Mesmo porque até para proibir algo é necessário ter bons argumentos.